sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Há tanto tempo
que este fundo silêncio
não é
o silêncio
mas a tua ausência

Sabemo-la
todos os anos, meses, dias
até as flores que eram tuas
a sabem
porque é infinita


quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Reminiscências do nosso jardim

Ainda sinto o perfume
das manhãs claras no jardim
quando me pegavas na mão
e me levavas
a ver as rosas

Eu deixava-me guiar obediente
para depois te deixar
inadvertidamente
e correr além-horizonte

Era então que o teu olhar-mar
se toldava de névoa
por me saber tão sonhadamente
rebelde

Mas eu corria sempre na tua direcção
depois de desafiar
a tua autoridade
porque o sol te inundava suavemente



quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A meu pai, Armindo Augusto

Deixaste que fosse pássaro
para que o céu e todo o espaço
me desse de beber
tragos de sentir e sopros de ser
no colo dos sonhos
contra qualquer ameaça

***

Deste-me a força e a agrura das fragas
para que essa semente
frutificasse em solo fértil
sem desesperança e muita convicção
na flor da sensibilidade
no delírio justo da criação

***

Tudo me deste para eu ser grande
Mas não fui forte como querias
porque anteciparam a tua partida
e no meu luto de anos e anos
fiz-me cativa do meu desespero
***
Não
Não quero que os teus amorosos olhos
azuis mar céu tranquilidade
se vistam de mágoa líquida
pois voltei a ser pássaro
e a sonhar os nossos sonhos

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Charles BAUDELAIRE, Les fleurs du Mal


Tristesses de la lune

Ce soir, la lune rêve avec plus de paresse ;
Ainsi qu'une beauté, sur de nombreux coussins,
Qui d'une main distraite et légère caresse
Avant de s'endormir le contour de ses seins,

Sur le dos satiné des molles avalanches,
Mourante, elle se livre aux longues pâmoisons,
Et promène ses yeux sur les visions blanches
Qui montent dans l'azur comme des floraisons.

Quand parfois sur ce globe, en sa langueur oisive,
Elle laisse filer une larme furtive,
Un poète pieux, ennemi du sommeil,

Dans le creux de sa main prend cette larme pâle,
Aux reflets irisés comme un fragment d'opale,
Et la met dans son coeur loin des yeux du soleil.




quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Duas identidades



Tenho duas identidades, dois sentires que, de tão opostos, por vezes, nem me reconheço. Não fui eu a sua criadora. Foram as circunstâncias.
A minha identidade verdadeira, a que me diz e é autêntica é, sem dúvida, a primeira. Porque sou verdadeiramente eu: nome, data, local de nascimento.
A segunda identidade, da qual só tomei conhecimento aos 11 anos, altura em que foi necessário utilizar o bilhete de identidade, tomou-me de assalto. Senti-me incrédula, injustiçada e, ao mesmo tempo, uma estranha.
Natália Jesus Seixas Augusto não era eu. Como podia digerir tamanha usurpação de identidade? Não a digeri. Nunca. Mas também nunca exigi que a verdade fosse reposta. Para quê?
Assim, não me é necessário criar outros eus, porque, quis o acaso, que tivesse pelo menos dois! Ainda que muitos outros me apareçam!

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Infância

Sabes
ainda rego as rosas odoríferas
inventadas a cada gesto preciso
no jardim
que era secreto e só nosso

Ainda as olho, toco e trato com paciência
como me ensinaste
e acarinho-as
com o mesmo olhar
cândido e ingénuo

Nesses momentos
roubados criteriosamente a qualquer relógio
volto a ser a criança
feliz
que brinca sob o teu mar e céu

Ainda oiço o timbre da tua voz
nas suas pétalas-veludo
porque os zéfiros ma sussurram
nesta hora
que se transformou num agora
sempre sem ti