terça-feira, 23 de outubro de 2007

Numa mesa
na esplanada do café Le Quai
papéis dispersos
despertaram
o olhar verde escuro do serveur

Uma voz respondeu à pergunta silenciosa

Sou a poesia que a imaginação dos seres
livres como tu
adivinham inocentemente o belo

Um sorriso ondulou no seu rosto tranquilo
e ainda sem dizer nada
sentindo apenas
afastou-se iluminado



Ler


Sempre que se abre um livro
No seu rumoroso e tranquilo silêncio
É já uma forma de antecipação
Do escrito mas ainda por decifrar

Que a leitura não é uma ingénua descodificação
Mas viagem deliciosa e iluminada ao mundo recriado
Pelo leitor-(re)escritor
O sempre iniciado-intérprete da palavra
Gravada na página anjo
Onde ser e sentir se dizem

Paris, 2007

Um distante dia de Outubro



Este fim-de-semana evoquei paisagens de outrora. São paisagens de um outro tempo, de um outro lugar, muito distante deste onde me encontro. Era tudo tão mágico, tão de sonho! Tão de mais!
Foi muito simples reabilitar esse passado. Creio que foi a paisagem do filme «Wicker Park» que me fez ressuscitá-lo. Como sinto falta da paisagem branca, branca! Ver os flocos de neve dançar do céu ininterruptamente, vê-los cair uns sobre os outros até cobrirem tudo com um manto imaculado.
Mais belo e inesquecível ainda é andar nas ruas brancas e sentir no rosto o frio cortante. Sabia tão bem fazê-lo! Mesmo quando os trilhos por onde todos passavam se transformavam numa lama aguada e acastanhada.
As roupas bem quentes que somos obrigados a vestir aconchegam-nos nesses passeios a pé. As luvas, os cachecóis, os gorros, os casacos compridos, as botas são de um conforto extraordinário. Tal como entrar numa chocolaterie e pedir um chocolate bem quentinho. Que aroma! Que sabor aveludado e doce.
Depois retomava o passeio sozinha ou acompanhada, tanto fazia. Quando sozinha, apreciava a neve nos telhados das casas, nas copas das árvores, nas margens dos lagos. Observava as pessoas na sua rotina diária. Quando acompanhada, gostava sobretudo de respirar fundo, encher o peito de ar frio e de me ver, depois, a expirá-lo como se de vagas de fumo se tratasse.
Sabe o ar a vinho tinto
chambreado
no esconderijo sagrado
dos dedos voluntariamente duplos


Olhos de paisagem passeiam
pelos telões
inventadamente0
oásis do ser


Encontros cromáticos
nascem
no espaço carmesim
no mais fundo estado
de lucidez


Corpos
erguem-se beijam-se possuem-se
nos nocturnos abraços
do álcool


Fremem no atelier
palpitações desejos transbordantes
quentes
de tão pele na pele
nas mãos do mestre-amante


Sabe o ar a vinho tinto
chambreado
no esconderijo sagrado
dos amantes sem hora

há qualquer coisa, Editorial Minerva (2000)

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

A F. P.

Sei a tua dor
Desde o dia em que te li
Sempre que te leio

Conheço
Tão bem o incomensurável
Do teu sentir tudo
Até à perversão
Soube-te a nada a tua existência
Tão essência

Buscaste-te
Nas entrelinhas do teu pensar
Doentemente
Para te encontrares inteiro
Mas ficaste ainda e só
Tu
Entregue à embriaguez de seres
Outros
Que não mais eram do que tu contigo

Ler para ser

Há uma passagem de um autor de que gosto particularmente. Fala da magia da leitura e do prazer que é entretecer-nos nas palavras dos livros que procuramos ou que, por um feliz acaso, nos chegam às mãos.
Para Michel Tournier a leitura é um milagre de que se sente “testemunha e actor várias vezes ao dia”, porque participa e se enreda completamente nos textos, nas aventuras, como se delas fosse participante. O “maço de folhas de papel enegrecidas de sinais” transformam-se e no seu espírito de leitor e recriador da palavra desenrolam-se uma série de aparições com as quais se emociona.
Este milagre é sempre passível de ser sentido por todos aqueles que não resistem a um bom livro, a uma boa história, a um momento de fruição pura. Porque ler não é maçada. É descoberta do outro e de todos os outros que não estando aqui e agora in presentia o estão nas suas palavras.
Os livros ensinam, divertem, encantam, provocam. Os livros fazem-nos sentir emoções contraditórias, repensar a nossa conduta e a nossa condição, questionar o descoberto e o ainda a descobrir.
Ler é e será sempre para o leitor verdadeiro, o leitor implicado, um acto de amor. Daniel Pennac sabe-o bem. Segundo ele “O verbo ler não suporta o imperativo”. É uma aversão que compartilha com outros: o verbo “amar”, o verbo “sonhar”…”. Sem dúvida! Da obrigação nasce sobretudo a aversão, a indiferença, o repúdio, o desamor. Não há imposição que seja bem aceite.
Porque lemos? Que livros lemos? Quantos livros lemos? Quantos lemos em simultâneo? Não teremos com certeza de explicar porquê. Diremos apenas “porque sim”, porque gostamos, porque é uma necessidade como tantas outras. Talvez tão urgente e premente como a sede e a fome.
Lemos sempre e cada vez mais, este, aquele e outro autor, lusófono, estrangeiro, traduzido ou não, para sermos o que somos: leitores apaixonados.

Páginas da infância

Os primeiros dias, os primeiros meses, os primeiros anos do Ser, que um dia seremos, depois de muitas aprendizagens, não podem aparecer subitamente. Há memórias que, ainda que registadas no inconsciente de cada um, não podem ser evocadas de imediato. Então, os pais contam como cada um foi, partilham os primeiros passos desse ser na caminhada que é a vida. É assim que esse outro lado de cada um aparece. Se há registos fotográficos, é ainda mais simples.
São fotografias de recém-nascidos até à criança, já com memórias. O dia do baptismo, em que nos vestiram um lindíssimo vestido de cerimónia; os aniversários ao colo do pai ou da mãe, para apagar a vela ou as velas do bolo de aniversário; as reuniões de família, sobretudo no Natal; o primeiro dia na escola; os primeiros amigos que nos deixaram receber em nossa casa; as brincadeiras no parque, no jardim, na rua, na praia. O pai e a mãe, às vezes, sobrepõem as suas vozes, narram os episódios de cada uma delas.
Aquelas imagens cristalizadas, de um tempo que ficou lá atrás, contam a história pretérita de cada um. Esses testemunhos são importantes. Quem os ouve, segue as palavras com atenção, fica suspenso nas palavras desses fiéis narradores, para se reconhecer.
Ali estão os momentos cristalizados, estáticos, mas de uma infinita inocência e pureza. Como são belas! Quantas vezes são (re)visitadas! Para recuperar essa identidade; a primeira, a que viria a definir-se. Quantas esperanças depositadas que, tantas vezes, não se concretizaram.
Eles, nossos progenitores, emocionados e agradecidos por esse recuo no tempo, que só assim recuperam, descrevem, em pormenor, as roupas, a escolha dessas e não de outras, os comportamentos, as brincadeiras desse dia. E a luz espalha-se nos seus rostos. Também eles eram outros!
Contudo, a emoção de outrora não é a de hoje, que as emoções não se repetem. Tal como esses dias, esses meses, esses anos.

14 de Maio de 2007