quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Fragmentos do Eu

Foto de Pedro Reis Miguel
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Sentia uma fraqueza interna que a mantinha num desassossego inquietante. Tinha de sair dali. Deixar tudo para trás como se não mais fosse voltar. Tinha de voar para bem longe, para outro lugar, conhecer-se até melhor. Talvez nem fosse necedssário! Sabia como era. Demasiado sonhadora e louca. Louca a ponto de ter chamado a si o abismo, por várias vezes. Agora que acontecia de novo, tinha uma só certeza. Partir. Era tudo demasiado real e atroz. Precisava de outros sonhos. Queria só ser feliz. E só podia ser noutro lugar. Quem a ouvisse, diria que continuava a fugir do real, da vida, como sempre fizera.

Não queria conhecer novas paragens. Queria revisitar aquelas onde fora feliz ou cujas memórias se apagavam já. Queria sentir o cheiro do mar de Biarritz, comer croissants em Montpellier, ostras suculentas em Cannes, apetitosas saladas em Nice, comer um Crêpe Suzette acompanhado de um khir numa terrasse de Paris. Sentia vontade de se passear nos jardins e avenidas deLondres, revisitar a Tate Gallery, o London Eye, beber champanhe rosé a meio da tarde, num pub de um requinte sem par.
Sentia também saudades de ouvir falar italiano, aquela língua melódica e cantante que um dia quisera aprender. Rever Roma, a Fonte di Trevi, as catacumbas, o coliseu... Estar de novo em Florença e visitar os museus e aí fazer, de novo, compras. Andar numa gôndola e nas ruas estreitas de Veneza. Comer fruta variada, fresca, que os vendedores ambulantes apregoavam. Hum, que delícia! Ir também a Siena e rever a praça redonda e inclinada, onde se fazem corridas de cavalos.
Não viajara muito. Mas sentia que deixara um pouco de si em cada um desses lugares. Não só por os ter visitado, mas também por ter vivido uma ou outra peripécia.
Tinha de partir. Sim! O mais depressa possível...

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Neblina

Manhãs de neblina húmida a anunciar um dia frio de inverno. Mais um entre muitos. O nevoeiro surge, instala-se e é o rei da terra.
Em pleno campo, o pastor e o seu rebanho fundem-se no nevoeiro denso. São silhuetas que se recortam, por breves momentos, numa luz opaca e lisa.
Habitam-no ideias de outros dias, de outros tempos, de outras circunstâncias. Caminha com dificuldade tropeçando nas fragas. Os anos pesam. Setenta e oito anos como pastor e sempre. sempre o mesmo inverno, a mesma neblina.
Leva o farnel às costas e pesa-lhe tanto como as suas ideias e os seus setenta e oito anos. Queria ser jovem e não sentir nunca o frio que hoje lhe entra nas carnes. Estremece! Não adianta acender uma fogueira porque o rebanho não pára. Anda sempre à procura de pasto, tanto faz a estação do ano e a temperatura.
Depois de encerrar as ovelhas na corriça, regressa a casa por volta das dezassete. Janta pouco tempo depois e ainda cedo vai para a cama! Tem de ser. No dia seguinte levanta-se às cinco da manhã. A rotina repete-se com ou sem neblina. Pastor e rebanho calcorreiam os montes. O primeiro entrega-se às suas ideias. O segundo, inconsciente, segue o instinto da sua condição de animal doméstico.
Em casa, a mulher do pastor faz o queijo de ovelha. Coloca a coalhada num aro e vai espremendo o soro até obter um queijo ainda por curar. Do soro, que coloca ao fogão numa panela, faz requeijões de que todos gostam.
Tudo aparece nos dias frios e húmidos e invernosos numa casa de campo.
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Autor da foto: F Nando

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O Beijo

Le Baiser de l' Hotel de Ville, Paris 1950
Robert Doisneau
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A expressão dos afectos é tão natural como respirar ar puro, como beber água, procurar-se em si e dar-se, entregar-se ao outro. Paixão é exaltação, dizem! Amor é tranquilidade. No entanto, quer se trate de paixão ou amor estamos a falar de sentimentos, da relação entre dois seres que se sentiram inequivocamente atraídos um pelo outro.
A expressão do que o que se sente começa pelo enamoramento. Trocam-se olhares cúmplices, sorrisos meio rasgados, palavras sussuradas ao ouvido, um ligeiro toque das mãos. São momentos de encantamento e de sonho que aumentam o bater do coração e que leva "às nuvens". Ele e ela querem estar cada vez mais perto um do outro. Sentem já a necessidade de estarem apenas a dois.
E o momento chega. Antes mesmo de dizerem o que quer que seja, beijam-se. São os lábios que se unem num beijo breve. Mas não podem ficar-se por aí. Beijam-se ene vezes. Beijos intensos. Beijos apaixonados. Beijos longos. Beijos e mais beijos. Abraçam-se, acariciam o rosto um do outro, beijam-se de novo. Na verdade, na troca de carícias entre um homem e uma mulher não há nada mais doce do que beijarem-se nos lábios e na boca.
As mulheres são muito sensíveis ao beijo. Sentem prazer em ser beijadas nos olhos, na boca, no pescoço, na palma das mãos, no colo, na barriga. Em suma, no corpo todo. Os beijos podem ser inesgotáveis. E elas correspondem com paixão, amor, intensidade e alguma marotice. Gostam de ser beijadas com intensidade e muitos mimos.
Hoje nem o homem nem a mulher se inibem na expressão do que sentem. Um beijo em público já não choca, porém também não convém exagerar. Tem também de se ter em atenção o lugar e o possível público. Até porque os portugueses são, ao contrário do que dizem, bastante críticos.
Quem é que nunca sonhou dar um beijo cinematográfico em público? Quem não gostaria de estar a beijar-se e ser fotografado por Robert Doisneau, imortalizando esse momento? Aliás, teria sido impossível, em Portugal, nos anos 50,um par romântico ser imortalizado numa foto. Havia a censura.
Claro que em Paris, também houve alguma polémica. Não obstante, não foi ao beijo dos amantes, mas a quem o protagonizou. Muito haveria a dizer sobre isso.
O que realmente é belo, intemporal, artístico é a foto, o autor e o par romântico que se beija na rua, bem perto da Câmara de Paris.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Ideias caprichosas

Os dias vão-se alterando a pouco e pouco, no entanto ainda não estou satisfeita. E desde quando me sinto satisfeita? Sou a insatisfação em pessoa! Depois da concretização de um projecto, mesmo que falhe quanto às minhas expectativas, preciso logo de outro. Porém a mente é caprichosa! E eu sou tão imprevisível e inquieta.
Neste momento encontro-me numa fase em que as ideias surgem e logo se perdem porque não consigo uma articulação lógica entre elas. Por vezes degladiam-se para prevalecer umas sobre as outras. Vencem as assertivas num demorado "brainstorming". Esta é uma das fases depois de momentos de vazio total.
Depois surge a história: o tempo, o espaço, as personagens, o enredo, o narrador, o estilo de escrita. Não sei se será por esta ordem. Isso já depende de cada narrativa e de cada criativo da escrita. O início costuma-me ser fácil. Há alturas em que não consigo parar de escrever. Escrevi um livro juvenil, ainda por publicar, em pouco mais de quinze dias. A certa altura, pareceu-me que era a narrativa que tomava conta de mim e não o contrário. Quando terminei, senti-me completa e feliz.
Numa acção de formação aprendi a criar blogues. Tenho este onde vou escrevendo de tudo um pouco, deixo-me levar pelo momento em que escrevo. E tenho outro onde tento narrar uma história. Mas esse vai sendo escrito seguindo os caprichos da minha mente, por vezes, vazia. Escrevi um post na passada sexta-feira.
O blogue intitula-se http://fantasianomundodaspalavras.blogspot.com/ e espero que essa narrativa escrita ao sabor da mente se transforme numa história só, que nasceu ao longo de dias e noites com alguns interregnos mais ou menos longos.
Tenho de regressar a Fantasia. Tenho essa certeza. Essa necessidade. Só tenho de me disciplinar e escrever com regularidade.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Confissão




Foto de F Nando

Arte Lisboa

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Há dias em que não sei de mim. Veste-me interina e vorazmente o desassossego e a inquietude e uma mistura de inação e desalento. Habitam-me pesadelos acordados e, por vezes, sem conseguir travar o nó na garganta, escorrem-me lágrimas quentes pelo rosto. Soluço! Porém nem sempre tenho forças.



Ainda que não tenha chorado, hoje foi um desses dias. Um dia de tanto silêncio! Um dia de tantos gritos interiores cinzentos. Hoje doeu-me tanto ser refúgio de mim mesma, febrilmente entregue à tempestade que já me tinha dito adeus. Isto imaginava eu. Enganei-me! Como sempre. Como tantas vezes me sucede...



segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Amanhã

Foto de F Nando
Arte Lisboa
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Depois da Hora será já Outro o Outro
Na madrugada, talvez fria, e de certeza solitária,
Hão-de fazer-se ouvir as ondulações das palavras
Como melodias suposta e imaginariamente originais,
Inventar-se-ão as cores do poema tela
Numa declaração de Amor
Bebericando o vinho abafado dourado
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Depois dessa Hora será a outra Hora
De um dia outro
Quase estático, silencioso
Mas tão esperado na sua linha ténue
Entre o ontem solar e bêbedo de paixão
De entrega e de declarações certas
Ainda que tão imperfeitas
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Madrugada de insónia e de drogas
Manhã de sonhos num sono afinal intranquilo
Tarde de ir respirar o ar do mar e do campo
E desafiar qualquer falésia sem lá estar
Porque esta é interna, interina, interior
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Fim de tarde com gotas de chuva anunciada
A escorrer transparentemente na vidraça
No amanhã a não esquecer

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Insanidade


Não sei que dia era. Não sei se estavam orgias de luz e poalha ou apenas nuvens plúmbleas. Também não sei nada do dia da semana, mês, ano.
Naquele dia o tempo, que teima em condicionar a vida humana, não tinha qualquer importância. Simplesmente não existia. Não o deixaria existir. Porque sim. Apenas.
Deixei-me entrar na minha própria mente, tantas vezes febril, apática, adormecida e passeei-me por ela com uma curiosadade faminta de mim. Só que tudo o que era orgânico, físico, psíquico não existia mais. Eu era outra. Melhor, eu era outras. Outras duplas de rostos iguais, mas sentires difversos. Talvez não fossem duplas. Talvez fossem clones. Não, não podia ser! Os clones são o aperfeiçoamento do que é considerado original mas imperfeito e ali não havia perfeição. Que absurdo!!!
O absurdo deste absurdo era estar absurdamente encantada com os meus clones imperfeitos. Mexiam-se como autómatos, deitavam-se de borco no chão e aí ficavam estáticos à espera de não se sabe o quê. Eram todos carecas! Por que seria? Ah, sim, lembrava-me... Num dia lunar, cortei o cabelo às tesouradas e depois tive de rapar o meu cabelo. Eu e eles tínhamos alguns momentos de vida comum ainda que não parecesse e poucos soubessem, desconfiassem ou acreditassem. Vivíamos no limiar da insanidade, à beira do precipício e à espera que tudo tivesse um fim. Até as deambulações.
Gostávamos de passear sem destino e por dentro de tudo. Não bastava ver uma escultura, tínhamos de sê-lo também. Estávamos sempre representados nas telas, porquanto ninguém soubesse. Éramos a partitura de algum músico. Sentíamos cada palavra escrita por tantos escritores.
Senti-me enjoada de mim. A minha mente regurgitava-me! Como? Porquê? Acordei num leito estranho, numa sala estranhamente branca, fétida de medicamentos e de morte cerebral.