quarta-feira, 30 de março de 2011

MENTES INQUIETAS

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.





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Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

Mário de Sá Carneiro




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EU QUERO AMAR PERDIDAMENTE

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder ... pra me encontrar...


Florbela Espanca


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O Palácio da Ventura

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busca anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formusura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão -- e nada mais!


Antero de Quental

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Não se sabe bem de onde vem essa inquietação. Mas ela existe e perturba qualquer ser aparentemente mais forte tornando-o frágil e à mercê ou da dor ou de um estado de delírio incontrolável. Apetece tudo e não se quer nada. Sabemos quem somos e logo depois já não nos reconhecemos nas palavras que dissemos ou escrevemos. Há uma angústia permanente. Um desassossego que não passa e dói fundo no ser. Às vezes, a obsessão acompanha todos os actos e pensamentos. Ninguém compreende. Quem sente sofre. A dor e o desespero são realmente o pior de tudo. O cansaço também.

6 comentários:

Eva Gonçalves disse...

Espero que não te estejas a referir a ti própria, pois talvez a interpretação do teu texto como um desabafo seja abusiva,(na realidade, não sabemos se estás apenas a fazer uma análise ao conjunto de poemas com tema comum) mas se for o caso, todos nós temos momento desses e apenas parece ao próprio que mais ninguém sente... Por vezes o cansaço necessita de espaço, dá-lhe esse espaço e descansa... e amanhã, ou depois, ou quando vier o sol, tudo estará melhor, acredita :) Beijinho

João Roque disse...

Com certeza, mentes inquietas, mas que nos deixaram um legado fabuloso.

mfc disse...

Quatro escritos e a mesma inquietação de viver!

Natália Augusto disse...

Olá Eva

No meu texto final não quis de maneira nenhuma comparar-me a esses génios da nossa literatura. Seria uma arrogância e, como diz, abusiva.

Muito sol.

Natália Augusto disse...

É uma verdade Pinguim. Além destes há muitos outros nas mais diversas áreas e nem por isso deixaram de viver a sua vida (ainda que alguns se tenham suicidado)

BJ

Natália Augusto disse...

Exacto. O mesmo SENTIR, a mesma fome de INFINITO.
Dos quatro, só Fernando Pessoas morreu sem se suicidar. Ou tê-lo-á feito inconscientemente?